Jair A. Pauletto
O Singular do Plural
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Doido por comida.
 
Acordou ainda sonolento, porém precisava levanta-se para atender um compromisso, logo na primeira hora da manhã. Jurou jamais marcar nada tão cedo. Era um sujeito avesso a acordar antes do meio da manhã, aliás, geralmente acordava somente após as onze horas.
O compromisso deveria ser honrado, apesar de tudo era um homem de princípios, jamais deixava alguém esperando, cumpria seus deveres, compromissos, rotinas e mil e outros rituais com extremo rigor, obsessivamente.
Espreguiçava-se na cama, ao mesmo tempo em que tateava na busca do controle remoto; queria ver a previsão do tempo na TV, para escolher a roupa adequada. Deitado com o olhar fixo no teto, observando um pequeno ponto escuro que parecia mover-se, continuava a remexer os braços na busca pelo controle remoto, que sempre ficava atirado pela cama. A cena lembrava um nadador nadando de costas. Encontrou o controle e pressionou a tecla Power, ouviu o barulho da TV ligando e imediatamente a moça do tempo previa um dia maravilhoso. Na posição que se encontrava, não conseguia enxergar a tela localizada a meia altura na parede à frente, tudo o que conseguia ver era a própria barriga. Era um enorme obstáculo em forma de semicirculo, na verdade, lembrava a abóbada da catedral de São Pedro, uma barriga que grávida alguma jamais imaginara alcançar, não que estivesse grávido, isso era para mulheres, mas muitas vezes sentia tantas dores abdominais que ele mesmo chegava a duvidar que não estivesse gestando um enorme bebê, afinal, toda essa imensa quantidade de gordura impedia-lhe visualizar a TV; mal conseguia ver os cantos superiores da parede em frente; o teto e as paredes laterais do quarto.
Um pequeno cochilo foi suficiente para que se atrasasse. Levantou-se e rapidamente escovou os dentes, fez a barba e pegou aleatoriamente um dos vidros de perfume e encharcou-se. Vestiu uma calça cáqui e uma camisa branca, com suspensório azul. Pegou um blazer, mas antes, tomou cuidado para escolher aquele, com botões dourados, para combinar com as presilhas do suspensório. Junto à porta percebeu que estava de chinelos, pegou um mocassim, calcou-o rapidamente e saiu apressado. O táxi já o esperava na portaria, em poucos minutos já estava no consultório.
Havia conseguido uma consulta extra, graças à insistência e a amizade com o médico, um velho amigo a família. O preço foi ter que levantar tão cedo, mas o problema gastro-intestinal crônico voltara a incomodá-lo. Após ouvir as mesmas recomendações de sempre, pegou o receituário e dirigiu-se para casa. A irmã trar-lhe-ia os remédios mais tarde, assim chegou em casa antes do horário que normalmente estaria acordando.
Fez o pedido da medicação a irmã, que o servia como uma enfermeira particular, desde criancinha. Sabia que em poucos minutos Jeanne Marie estaria chegando com os remédios. O cheiro de café alcançou suas narinas e despertou-lhe o aguçado apetite. Claudinete, que conhecia seus hábitos gastronômicos, serviu-lhe o café e toda uma infinidade de iguarias, como fazia a mais de dez anos. Jean Michel sentava-se confortavelmente na cabeceira da mesa e vagarosamente apreciava em abundancia todo aquele banquete.
Jean Michel vivia naquele apartamento muito antes de seus pais se mudarem para o andar superior. Chegou ali, logo após atravessar a adolescência, juntamente com as irmãs, Jeanne Marie, Joanna e os pais. O tempo e várias incursões amorosas frustradas fez com que acabasse morando sozinho. As irmãs, com o casamento foram as primeiras a deixar a casa, depois o pai e recentemente a mãe. Caçula da família foi criado pelas mulheres da casa, como um príncipe em seu castelo. O pai, assim que se aposentou, encontrou nos livros seu ultimo refúgio de prazer, fizera da carreira diplomática a razão de sua vida. Foi na França que conheceu a esposa Jannie, filha única de uma família da falida aristocracia francesa, e foi ali mesmo, enquanto servia seu país como embaixador, em Paris, que se casou. Os filhos nasceram já nos primeiros cinco anos de casamento, mas foi logo depois que Jean nasceu, que a família foi transferida para Roma, depois Buenos Aires, Lisboa e Washington. Com a aposentadoria do pai, Copacabana, tornou-se o endereço fixo.
Nestas constantes mudanças, Jean mal conseguia se adaptar as novas cidades. Praticamente cresceu sozinho e os amigos eram raros. As irmãs e suas amigas passaram a ser suas melhores companhias. Sentia-se seguro com elas e livre dos inúmeros apelidos que os meninos da sua faixa etária lhe impunham. Frequentava os melhores colégios, ou estudava com professores particulares na embaixada; aprendeu as boas maneiras de forma exemplar; conhecia hábitos e costumes de vários países. Tornou-se um conhecedor do mundo e desenvolveu refinado bom gosto pelas artes. Conheceu pessoalmente vários artistas, pensadores e outras personalidades famosas. Conhecia literatura profundamente, apaixonado por filosofia e por jardinagem como ninguém. Um homem inteligente e bem educado que desenvolveu gostos refinados, porém era a gula o pecado que não conseguia se livrar. Brigava com a obesidade desde criança, passou pela adolescência com mais gordura que qualquer outro adolescente, já na fase adulta, estava mais gordo que o rei momo do carnaval de 2007.
Mas, foi somente com o inicio da puberdade que ele percebeu que aquela forma arredondada era muito mais incomoda que a chacota dos colegas. As meninas que o adoravam como o fofinho, o queridinho da sala de aula, não demonstravam o mesmo carinho quando o assunto era uma dança, uma festa ou qualquer outra atividade do colégio. Quando Lucia, a pequena portuguesinha, aceitou seu convite para o cinema, virou alvo de zombaria de todas as meninas da sala. Isso foi suficiente, para que sua popularidade despencasse também entre as meninas, nunca mais conseguiu sair com qualquer jovem até a faculdade. Na faculdade a história se repetiu, poucas vezes conseguiu a companhia feminina, após alguns encontros era abandonado sem qualquer explicação. A alternativa foi utilizar-se dos sólidos conhecimentos adquiridos nos bons colégios que tivera acesso, para atrair algumas mulheres que buscavam ajuda nos estudos. Esta tática, no entanto, só funcionava com aquelas menos favorecidas pela natureza. Mesmo discriminados pelos demais homens por serem desprovidas de beleza, portanto com pouca ou nenhuma possibilidade de escolha, essas mulheres raramente mantinham um relacionamento mais longo que um semestre. E como as anteriores, elas simplesmente desapareciam sem qualquer explicação.
Toda a vida amorosa, após a formatura resumia-se em três relacionamentos. A primeira namorada chamava-se Olívia, uma mulher feia. A feiúra de Olivia era tanta que superava o desespero por não conseguir arranjar um companheiro, após 37 anos. Numa época em que se casar aos vinte anos era casar na velhice. Jean com treze anos a menos, encantou-se com o tratamento que ela lhe dispensava. Ela por sua vez, via nele a única alternativa para fugir da solidão amorosa. As boas maneiras e o refinado bom gosto de Jean, encantaram Olívia que sonhava em torná-lo seu marido. As gentilezas, os jantares e todas as atitudes de cortejo que Jean naturalmente exibia a deixavam encantada. Havia o inconveniente do tamanho, do futuro noivo, já que ele era quase quatro vezes mais pesado que ela. No entanto, não foi o peso descomunal de Jean que fez com que ela abandonasse o sonho de casamento. Definitivamente, uma vida de solteirona, mesmo com todo o preconceito da sociedade, ainda era melhor do que agüentar aquelas crises digestivas e intestinais do sonhado marido.
Fabrícia era diferente; se tivesse alguma beleza seria difícil de descrevê-la. Era uma mulher desproporcional, tanto no conjunto cabeça, tronco e membros, como na suas reações diante de determinados fatos. Ela adorava os galanteios e as possibilidades para uma vida boa que Jean lhe oferecia. Encantava-se com os restaurantes finos, com o champanhe importado, com toda a finésse e tudo que cercava a vida de seu gorduchinho, aliás, finésse era coisa que ela sabia não ter. Os primeiros meses de relacionamento resumiram-se ao encantamento e ao desfrute de toda essa “coisa fina” proporcionada por Jean. Desde a sua adolescência, passada no campo e depois na vida dura no morro, ela sempre sonhara com uma vida assim, uma vida de princesa. Era exatamente assim que Fabrícia se sentia. Tudo ia muito bem até ela se acostumar com as mordomias e começar a reclamar da flatulência do seu “amado gorduchinho”. Reclamações que depois se tornaram pequenas brigas e finalmente na dolorosa separação. Para ela, pela perda da sonhada vida mansa, ele pelo retorno a solidão. Fabrícia, dez quilos mais gorda, voltou para o morro. Já ele, mais uma vez encontrou consolo na comida.
O caso mais rápido, mas também mais marcante foi o que aconteceu com Julia. Uma linda mulher, uma ninfomaníaca em fase de recuperação. Por razões que somente a vida conhece, um belo dia trocaram telefones e uma semana depois, ela trocou de cama. Foi uma relação de mutualismo, ele auxiliava-a na terapia e ela satisfazia seus desejos sexuais. Porém, todavia, contudo e, entretanto os gases novamente interferiram na relação. A justificativa para a separação foi deixada na cabeceira da cama em poucas palavras, que dizia: “Querido Jean! Minha mãe sempre falava que pum é igual a filho; pra agüentar só mesmo quem faz. Agora tenho certeza que ela estava certa. Portanto, espero que entendas que não posso mais ficar. Obrigado pela acolhida. Adeus”.
Claudinete abriu a porta e Jeanne Marie adentrou com a sacola de remédios que o doutor Laerte havia receitado.
- Jean Michel! Não terminaste o café ainda. Não deverias comer tanto nesta sua situação. Esses embutidos são um veneno para sua saúde. Venha tomar o seu remédio.
A irmã disparou todas essas palavras, enquanto desembrulhava um vidro de leite de Magnésia e algumas cartelas com comprimidos de um laxante conhecido, aliás, este era um medicamento que podia ser encontrado em várias partes da casa. Uma comodidade para Jean, que freqüentemente lançava mão deste recurso para solucionar os problemas abdominais.
Calmamente, ele tomou o último gole de café e dirigiu-se calmamente para a poltrona da sala e começou a folhar o jornal.
Ela continuava a desferir um sermão de recomendações, mas ele inconscientemente ignorava, respondendo com gestos ou com algumas palavras evasivas, aliás, Jeanne Marie já devia estar acostumada a aquelas respostas, pois era o que sempre repetia nessas ocasiões em que a irmã vinha lhe fazer companhia.
Jeanne Marie, que tinha uma paciência quase infinita já estava à beira de um ataque de nervos com o irmão glutão. Ultimamente, para atender o irmão, vinha deixando seus afazeres domésticos e principalmente o cuidado com os filhos: Carlos Henrique e Sofia por conta da governanta e dedicando as manhãs e algumas tardes aos cuidados do irmão, Jean.
Hoje, no entanto, ele parecia realmente abatido, tanto que tomou o medicamento para a acidez gástrica sem resmungar. Então, ela telefonou para o motorista para que pegasse as crianças na escola e as trouxesse para almoçar na casa do tio, assim poderiam passar à tarde juntos e quem sabe alegrar Jean.
Ao ouvir o telefonema da irmã, reanimou-se e tomou a primeira dose de laxante, queria que a barriga se afrouxasse um pouco para poder abraçar e brincar com as crianças. Não demorou muito para o medicamento fazer efeito, sentiu-se feliz. Logo no primeiro sinal de movimentação intestinal, começou a levantar-se e dirigir-se ao banheiro. A primeira bufinha – teoricamente uma pequena ventosidade, emitida pelo ânus, na realidade uma pequena explosão de gás com cheiro nauseabundo - escapou ainda na sala, emitindo um som que lembrava uma motocicleta de baixa cilindrada envenenada que se fez ouvir por toda a casa. Assim que o barulho pausava um odor insuportável tomava conta da casa. Não havia local que pudesse se respirar com relativa facilidade.
Claudinete que de boba não tinha nada, nestas horas corria para a janela mais próxima a procura de ar puro. Esses acontecimentos eram tão freqüentes que Claudinete, mesmo sem ter frequentado a escola, já havia aprendido que o som de propaga mais rápido que o ar. Uma lição aprendida na prática, aliás, na necessidade de sobreviver. Assim, quando aquele barulho iniciava, ela sabia que logo após vinha àquela falta de ar e largava tudo o que estava fazendo para correr para a janela. Nas épocas de crises do Doutor Jean, ela vivia dias terríveis, já nos dias de chuvas era obrigada a se expor à chuva para poder respirar. Nos momentos de grande concentração daquele gás, temia que a casa explodisse, pois tinha visto na televisão que em certos aterros de lixo, surgia um gás fedorento que se inflamava facilmente, assim evitava ligar o fogo e até mesmo lâmpadas e qualquer eletrodoméstico elétrico. Nutriu um pequeno temor de não poder um dia preparar a comida do patrão, devido a esses problemas.
Comida, aliás, era o que mais agradava o patrão, um sujeito tão bom de garfo ela jamais havia visto, sequer imaginado que pudesse existir, de qualquer forma, isso era sua mina de ouro, pois lhe garantia o salário todo o final de mês. Difícil mesmo era o trabalho da diarista, Fabíola, contratada a peso de ouro após a desistência de inúmeras candidatas, que não suportavam aqueles dias em que as crises do Doutor Jean se manifestavam, então Claudinete ia levando seus dias nesta situação com resignação.
A manhã toda foi de grande movimentação, enquanto Jean alternava demoradas evacuações no banheiro da suíte e a freqüentes disparos de gazes na sala de estar. Claudinete preparava o almoço e Jeanne Marie se dedicava aos telefonemas e ao vaporizador, tentando neutralizar os odores.
Assim que as crianças chegaram, o almoço foi servido, e mais uma vez, apesar de seu estado, Jean literalmente abusou da comida. As crianças que por diversas vezes já haviam reclamado do “mau cheiro” não agüentaram esperar o tio terminar o almoço e foram liberadas pela mãe para brincar na sala. Elas trouxeram da escola algumas bexiguinhas e resolveram enchê-las com água, mas logo foram repreendidas pela mãe, protestaram, mas a única alternativa foi utilizar o ar dos próprios pulmões e, logo iniciaram um jogo de vôlei imaginário por todas as dependências da casa.
Neste dia Jean dispensou a sobremesa, pois os intestinos pareciam estar em pé de guerra com sua gula, logo que saiu da mesa sentiu que a tarde seria difícil, nem mesmo a segunda dose de medicação parecia aliviar seus sintomas, sentia-se exageradamente estufado. Uma sensação tão difícil de definir quanto o mal estar.
As evacuações tornavam-se mais freqüentes e liquefeitas e já não se dirigia mais à suíte, utilizava o banheiro social que além de estar mais próximo também era mais cômodo. A irmã já sentia a “inesgotável paciência” ausentar-se e dar lugar a um sentimento de revolta, nojo e repugnância. Resistia em admitir, mas agora era obrigada a admitir, que a irmã sempre estivera certa ao definir o irmão como um purgante. Ironicamente era exatamente isso que ele era. Não suportando mais aquela situação, sentindo-se culpada por expor os próprios filhos a aquele ambiente, que literalmente cheirava mal, chamou o motorista para levar as crianças para casa. Pediu para que Claudinete as acompanhasse, enquanto ela ligaria para o doutor Laerte para informar-se melhor do problema de saúde do irmão, afinal, esta parecia ser uma crise muito mais grave de todas as anteriores.
Doutor Laerte atendeu prontamente a velha amiga e expôs as causas dos freqüentes problemas gastrintestinais de Jean. Mais uma vez a gula voraz era citada como a principal causa, mas o bom amigo, diante da gravidade da crise, colocou-se à disposição para qualquer eventualidade.
Menos de uma hora depois, Jean que há mais de duas horas havia se recolhido a sua suíte, gritou para a irmã;
- Jeanne venha até aqui, por favor.
A irmã estremeceu, só de imaginar a qualidade do ar que teria que respirar, assim que atravessasse aquela porta, mas dirigiu-se apressadamente ao banheiro de Jean.
Ele estava em pé, olhando fixamente para o vazo sanitário. Ela reuniu toda sua coragem, olhou e viu algo inimaginável. A quantidade de porcaria era inacreditável, o vazo estava completamente cheio, chegava a transbordar, uma coisa descomunal. Havia ali, uma quantidade gigantesca de fezes que seria impossível livra-se delas simplesmente com a descarga. Jean parecia não acreditar que tivesse expelido toda aquela borra, até mesmo ele, acostumado a expelir quantidades exageradas de fezes, estava preocupado.
Jeanne Marie lembrou-se das palavras de presteza do doutor Laerte e telefonou-lhe imediatamente, o qual se prontificou a vir pessoalmente avaliar o paciente e recolher uma amostra par análise em laboratório.
Assim que o doutor chegou, examinou o moribundo, recomendou alguns exames e tratou de recolher uma amostra do material expelido. Ao entrar no banheiro, ficou chocado com o volume que se apresentava; pegou um pequeno bisturi e introduziu-o naquela massa fedorenta, a fim de retirar uma boa amostra. Assim que tocou, o imenso volume explodiu, causando um estouro no interior do banheiro. Foi merda para tudo que é lado, as paredes pareciam recém pintadas, e o móvel ficou como se tivesse recebido uma camada de pátina, para dizer o mínimo. Doutor Laerte deixou seu uniforme branco na pia, passou pelo outro banheiro e um tempo depois encontrou com os irmãos esperando na sala.
Jean, imediatamente perguntou:
E então doutor, já tinha visto uma quantidade tão grande?
- Quantidade tão grande sim, mas que explodisse nunca.
Jeanne Marie não precisou de maiores explicações para solucionar o mistério da explosão, pois imediatamente lembrou das bexiguinhas da filha Sofia, que haviam sumido pela casa.
Jaìr A Paùlétto
Enviado por Jaìr A Paùlétto em 02/03/2009
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